quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Matéria investigativa: os homens da rua 3

ANDERSON ROCHA / LORENA OTERO

Nem era tão tarde assim: no relógio, os ponteiros sinalizavam que ainda faltariam duas horas e catorze minutos para a meia noite. Mas algo parecia convidá-lo a deixar aquela comemoração, num bar na região sul da capital, e seguir de volta para casa, em Contagem. Na cabeça, a memória de um lugar hesitava em aparecer. Ele havia estado ali por algumas vezes; um possível retorno era motivado pelas lembranças da última visita. No carro, o  acelerador reagia à vontade de chegar: os minutos passavam e, à cada música que tocava no rádio, mais próxima estava a conclusão de um conflito. Seguir para casa ou voltar lá? No peito, pulsava uma sensação que o perturbava. A decisão era agora. 

Rua Três: carro de possível frequentador passa entre os caminhões

Este local, motivo da apreensão descrita, é a Rua Três, na região da Cidade Industrial, em Contagem. Ali, como em diversas outras partes da cidade, funcionam muitas empresas e indústrias. Mas é no período noturno que, a até então pouco movimentada via, assume outra faceta. A Rua Três se torna “a rua da pegação da Praça da CEMIG”, como é conhecida pelos homossexuais que frequentam o lugar. Homens, de variadas idades, classes sociais e profissões, circulam pela região em busca de conversas, companhia e prazer. A dinâmica da rua, segundo os entrevistados, é de ponto de encontro underground e não um local de prostituição. Esta reportagem esteve na região durante duas noites e acompanhou a rotina de quem, por necessidade, trabalha por ali, e de outros homens que, por escolha, passam pelo local e se expõem a riscos de assaltos, agressões e contaminação por doenças sexualmente transmissíveis.

Praça Antônio Mourão Guimarães. Ou, como é mais conhecida: Praça da CEMIG, na Cidade Industrial, em Contagem. O local é ponto de interseção de vias que dão acesso a Belo Horizonte, pela Avenida Amazonas, ao estado de São Paulo, pela BR 381, além das regiões do Barreiro e do Eldorado. É ali, na esquina com a Avenida Cardeal Eugênio Pacelli, que está localizada a Rua Três. Para quem freqüenta o local, entretanto, o nome é outro: “rua da pegação da Praça da CEMIG”. Na região, a maior parte do espaço é ocupada por indústrias e empresas, como a V & M do Brasil e o Shopping Itaú. A área industrial utiliza quarteirões inteiros e possibilita que algumas ruas fiquem vazias. À noite, a situação se intensifica. Algumas das vias, como a Três, ficam sem circulação de pessoas. Não fosse um porém.


DE NOITE NA RUA

Gustavo Alves, 23, açougueiro. Renato Mariano*, 24, coordenador administrativo de uma rede de supermercados. Alexandre da Silva, 30, professor. William Passos*, 49, metalúrgico. Alex Martins, 18, estudante. Estes são só alguns dos homens que ajudam a tornar a Rua Três um local movimentado durante a noite. As idades, as profissões e as classes sociais variam tanto quanto as motivações para freqüentar a “rua da pegação”. Todos já foram mais de uma vez e, até o momento, pretendem voltar.

Os homens que fomentam a vida noturna na rua vão desde o carreteiro evangélico Wesley Silva, 40, até o advogado Joaquim Siqueira*, 36. Apesar de apenas quatro anos de diferença na idade, um abismo cultural e de experiências de vida separam estes dois homens. Wesley é casado, tem filhos, estaciona o caminhão na Rua Três para carregá-lo na Transportadora São Geraldo e se preparar para mais uma viagem. Para ele, o comportamento homossexual é o que atrapalha o ser humano. “Todos os gays que freqüentam esta rua deveriam aceitar Jesus e parar com esta sem-vergonhice”, acredita. Joaquim vai até a “rua da pegação” há cinco anos. Ali, ele já se interessou por outras pessoas, já fez sexo, e já fez até amigos. Como militante da causa LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais), ele acredita que ao freqüentar estes locais, onde práticas homossexuais explícitas compartilham o mesmo espaço que atividades operacionais, como a dos carreteiros, é possível traçar um panorama da incidência da homofobia, e classificar até que ponto vai a tolerância das pessoas. “É nítida a reprovação no olhar dos caminhoneiros com a presença da gente aqui”, opina. Ele afirma que continua visitando o local por curiosidade e interesse. ”Você está sempre com vontade de vir”, comenta.

Parece vício. E talvez seja mesmo. “O dia que não tem aula na faculdade, o dia que não tem nada para fazer, você acaba vindo pra encontrar alguém para trocar idéia, para conversar. E muitas vezes, encontrar alguém para gozar e ir embora”, conta o advogado. “É um prazer fácil, acessível. A pessoa vicia. Tem indivíduos que vão quase todos os dias”, é a opinão do mestre em ciências sociais, Alexandre Teixeira, da PUC Minas. Em 2003, ele escreveu uma dissertação sobre os locais de encontro homoeróticos na região metropolitana, como a “rua da pegação”.

Para o jornalista Eduardo Camargo*, 27, a ida à rua é esporádica. “Na maioria das vezes vou por curiosidade”, diz. A sensação de ir pela primeira vez ele não esquece. “Homens passeando de carro, além de motoqueiros e outros caminhando entre os caminhões. Saí rápido. Senti medo e um pouco de repulsa”, relembra. Já o coordenador de supermercados Renato Mariano, 24, assume que vai à rua por necessidade. “Aqui é o meu único contato com o mundo gay. Trabalho numa empresa conhecida, ocupo um cargo de chefia e, se expor minha sexualidade frequentando lugares assumidamente gays, poderia prejudicar minha imagem lá dentro”, afirma.

Entrevistado Renato Mariano (nome fictício), coordenador administrativo de uma rede de supermercados

O sexo fácil é a motivação do vendedor Saulo Sampaio*, 22. “Você sente uma excitação e resolve por aqui mesmo. Venho por causa do local, que é público e tem um sexo explícito. Aqui é mais intenso, é muito fácil e vistoso”, conta. Ele se diz descrente das relações e não vê diferença entre conhecer alguém na rua, em uma boate ou bar. “Hoje em dia o meio (ambiente homossexual) está muito complicado. Não importa aonde você vá: você não tem segurança em ninguém”, opina. Ele conta que casais gays vão à rua juntos para encontrar outros homens. “Um fica na rua de cima e o outro na rua de baixo”, diz. Para ele, homossexual ou heterossexual, todos os homens pensam em sexo primeiro. Depois, em carinho.

O professor de química Alexandre da Silva, 30, frequenta a rua há um ano. Comprometido há dois, ele assume visitar o local por um motivo específico. Ele saiu do bairro Castelo, em Belo Horizonte, e andou aproximadamente 25 quilômetros para conferir se o namorado, que mora em um bairro próximo da rua Três, estava lá. “Você começa a conhecer a pessoa em outros aspectos e passa a desconfiar mais ainda”, desabafa. Alguns souberam da existência da rua por recomendações de amigos, outros pela internet, mas nem todos assumem fazer sexo em público, fator que mais incomoda os carreteiros e aqueles que, por algum outro motivo, passam por ali.


TRABALHADORES DA RUA TRÊS

Naquela rua não há casas. A transportadora São Geraldo é uma das empresas que funcionam ali. No galpão, ficam armazenadas cargas de arame da empresa Belgo, que são transportadas para vários estados brasileiros. Durante toda a noite, enquanto aguardam a hora do carregamento, os motoristas deixam os caminhões estacionados. A rua, que já tem iluminação pública insuficiente, fica mais escura ainda. Isto porque as carretas, enfileiradas, criam uma barreira visual, que facilita a movimentação de homossexuais e, por consequência, o sexo. Porteiro da empresa há 5 anos, Vicente Marques conta que os colegas o prepararam para o que ele veria quando começou a trabalhar no lugar. Liberal, ele diz que não se incomoda com o que acontece. “Hoje as coisas mudaram muito”. No entanto, ele condena a prática sexual em público e afirma que, em determinados momentos, ela pode ser constrangedora para quem se desloca pela região. “De vez em quando, o trânsito está ruim (na Amazonas) e o pessoal desvia (do congestionamento) e passa por aqui, com ônibus, automóveis. Se for à noite, podem ver coisas que não gostariam”, conta.

A movimentação noturna na região se expande por duas outras vias, como a Rua Dois. Paralela à Rua Três, ela é mais iluminada e, portanto, tem movimentação menor. Durante o dia, na Rua Dois, funciona uma agência do banco HSBC. Bem em frente ao banco, do outro lado da rua, há um trailer de lanches do senhor Guilhermino Leite*, 46. No local há seis meses, a experiência o mostrou que o movimento causado pelos carros e pessoas afasta os ladrões que poderiam prejudicar o seu negócio. “O único problema é a sujeira. Quando chego de manhã, preciso recolher as camisinhas usadas ao redor do trailer. Senão, ninguém vai querer fazer um lanche comigo”, diz.

Trailer de lanches do senhor Guilhermino Leite (nome fictício), na rua Dois

Este também é o ponto de vista do carreteiro carioca Leandro Queiroz, 33. Para ele, a única vantagem é a sensação de segurança. “Por um lado é até bom que não tem ladrão. Aí é tranqüilo que você deixa o caminhão aqui e ninguém rouba. Quando o pessoal está aqui assim, não tem assalto”, afirma. Por passar muito tempo longe de casa, alguns caminhoneiros trazem a família em determinadas viagens, para acompanhá-los. Leandro é um deles. Casado e pai de dois filhos, ele se sente constrangido com a presença dos homossexuais. “Quando a gente traz a família, a gente nem fica aqui”, conta. “É assim: para um cara bem arrumado, bem vestido. Dali a pouco, para um do lado do outro e começam a se beijar igual mulher. Isso não existe”, descreve. Para o também caminhoneiro Marcos de Oliveira, 22, a presença dos homossexuais é totalmente negativa. “Acho uma sem vergonhice. Nenhum carreteiro que eu conheço apóia ou faz uso desse tipo de serviço. Por mim, todos eles deveriam ser expulsos daqui”, opina.

O metalúrgico William Passos, 49, freqüenta há cinco anos e conhece outra realidade. “Os caminhoneiros se envolvem muito com os caras daqui. Lógico que eles vão negar, mas muitos deles saem (com os homens da rua Três) sim”, conta. Para ele, a rua não é local para fazer sexo. “Não fico à vontade. Conheço aqui e convido para um barzinho, um motel da vida”, diz. Mas ele reconhece que muitos homens fazem uso distinto. “A maioria do pessoal que vem aqui gosta daquela muvuca: tudo escuro, junta aquele monte de gente e todo mundo participando”, explica.

Em situações como estas – de orgia sexual – o risco de contrair uma doença sexualmente transmissível, e até a AIDS, são grandes. Todos os entrevistados parecem ficar com medo quando questionados e afirmam se proteger. “As poucas vezes que fiquei com alguém e mantive alguma relação aqui foi com preservativo. Portanto, com doença, eu não me preocupo”, opina o jornalista Eduardo Camargo, 27.

Foi para tentar evitar que doenças se disseminassem no local, que o advogado Joaquim, membro do extinto Centro de Referência Vida, de Betim, começou a trazer e distribuir camisinhas para os homossexuais. Segundo ele, a proposta era sempre de tentar conscientizá-los para os riscos do sexo inseguro. Além disso, dava orientações aos amigos e colegas sobre posturas mais adequadas. O advogado afirma que teve que parar com a distribuição depois que foi impedido pela polícia. “Disseram que a grande quantidade de camisinhas que eu carregava configurava prostituição”, explica.


HOMENS DA LEI: O PERMITIDO E O PROIBIDO

Para a Polícia Militar, pontos públicos de encontro sexual, como a Rua Três, não são tão comuns, mas existem. “Há locais na cidade que são utilizados por pessoas que procuram este tipo de relação”, afirma o Capitão Gedir Rocha, assessor da PM. Em Belo Horizonte, por exemplo, existem mais dois locais semelhantes à “rua da pegação”. Durante à noite, as ruas da parte de trás do Fórum Lafayette, na região do Barro Preto, se transformam em ponto de prostituição masculina. Já nas ruas próximas ao Pampulha Iate Clube, no bairro Jardim Atlântico, homossexuais também tem atitudes parecidas como as descritas em Contagem. A Rua Três, porém, guarda características peculiares, como o fato de não ter residências ao redor e nem garotos de programa - pelo menos na opinião dos freqüentadores.

Segundo a Secretaria de Estado de Defesa Social, não há dados específicos sobre a região da Cidade Industrial, em Contagem. De acordo com o mais recente Boletim de Informações Criminais de Minas Gerais, de 2010, o número de crimes violentos no munícipio de Contagem, como homicídios tentados, estupros, roubos e roubos à mão armada, cresceu 30% em comparação com o mesmo período do ano anterior. No mês de setembro, dado mais recente, foram registradas 510 ocorrências de crimes violentos em toda a cidade. Já os homicídios consumados, que são aqueles que levaram efetivamente à morte da vítima, registraram 12 mortes.

A região é perigosa e, segundo a Polícia Militar, são feitas rondas regulares em todas as áreas com grande histórico de reclamações da sociedade. Para o Capitão Gedir Rocha, o problema na “rua da pegação” excede à questão policial. Segundo ele, a Polícia desenvolve, em parceria com a Secretaria de Saúde e outras entidades, trabalhos para atenuar as conseqüências deste tipo de atitude. “Sabemos que nestas relações promíscuas, as pessoas podem ser contaminadas. Então, enxergamos isto como uma questão não só de Polícia, mas como uma questão de saúde pública”, afirma.

De toda forma, o trabalho policial ostensivo está presente. O capitão explica que a orientação dada aos oficiais é abordar pessoas em situação suspeita. Esta abordagem, segundo ele, não discrimina aparência e orientação sexual. “A questão é que, independente se é homossexual ou não, se uma pessoa está em um local com registro de crimes ou que a sociedade reclame com frequência, ela irá ser abordada”, conta. “Se uma pessoa está parada, numa rua escura, não tem problema nenhum. Se tiver beijando, também não. Beijo não é crime”, complementa. Ele finaliza explicando que o sexo ao ar livre ou dentro de um carro configura uma contravenção penal, sujeitos às providências criminais cabíveis.

Segundo alguns freqüentadores, esta abordagem, porém, nem sempre é feita da melhor maneira. O advogado Joaquim Siqueira conta que já denunciou a postura da polícia. Em uma ocasião, estavam ele e mais três amigos conversando, encostados na mureta do passeio. Próximo a eles, estava um trio de homens praticando sexo oral. “De repente, a polícia chegou e começou a espancar todos, falando que aquilo não era lícito”, conta. Para o advogado, a polícia tem o dever de chegar, orientar e, se necessário, coibir ações das pessoas, mas não pode proceder com agressão física. Na época, ele anotou a placa da viatura e denunciou os policiais à corregedoria da PM e aos Direitos Humanos. Segundo Joaquim, os policiais zombaram e ameaçaram os homossexuais. “Eles comentaram que se os encontrassem por ali novamente, iriam agredi-los”, diz. O porteiro Vicente explica que, freqüentemente, a polícia faz rondas na região para espantar os freqüentadores. “Eles vem e dão uma geral. Muitos passam com mochila nas costas, então são revistados”. Mesmo com a presença da polícia, situações perigosas parecem não ser totalmente evitadas.


SEQUESTRO QUE NÃO ASSUSTA: POR QUE AS PESSOAS VÃO LÁ

O vendedor Saulo Sampaio, 22, estava encostado no carro na noite de 22 de novembro de 2009, quando dois homens se aproximaram dele e começaram a conversar. “Aqui você não sabe quem é gay, quem é ladrão, quem é casado, quem é solteiro. Você vai conversando com as pessoas”, conta. Em determinado momento, pediram a chave do veículo para o vendedor, que se negou a entregá-la. “Eles tiraram uma arma, me levaram até a região da CEASA (Contagem), onde me deixaram e foram embora com o carro”, conta. Saulo registrou boletim de ocorrência na Polícia Militar e contou (quase tudo) para os pais. “Não contei onde tinha sido o sequestro”, diz. A ação que comprometeu a integridade física do jovem, porém, não o impediu de voltar outras vezes à rua. “No começo fiquei com medo de voltar, mas como a necessidade de sexo fala mais alto, não resisti.”, afirma. 

Para o jornalista Eduardo Camargo a “rua da pegação” é só mais um ponto de encontro homossexual. “São homens querendo conhecer homens. Acontece esse tipo de interesse em todo lugar: na praia, no trânsito. Aqui é, apenas, mais evidente. Algumas pessoas acabam ultrapassando o limite do aceitável. Mas isso também tem em todo lugar”, opina. “Já conheci pessoas formidáveis naquela rua. Pessoas de caráter, bem sucedidas”, conta. Ele também diz que não gosta de ir ao local. “Todas as vezes que fui, estava carente”, afirma. Já o advogado Joaquim vê outra motivação. Segundo ele, Belo Horizonte é uma cidade com muitas opções para o público homossexual, como bares, restaurantes e boates. “Tem até igreja evangélica voltada para gays”, diz. Porém, ele afirma que muitos homossexuais não tem coragem de freqüentá-los. A “rua da pegação” se torna a saída para muitos. “Aqui o pessoal vem porque é à noite, escuro, não é freqüentado pelo grande público. Para quem não quer assumir para ninguém, nem pra família, então aqui é o lugar em que eles encontram como espaço para expressar sua sexualidade”, afirma.

A psicóloga Emanuelle Pinheiro Pessoa destaca algumas das motivações que levam uma pessoa a frequentar lugares que, talvez, não considerem adequados. De acordo com Emanuelle, as pessoas podem ir porque não tem acesso a lugares privados, por carência, falta de esclarecimento, por repressão, por influência de uma turma e por curiosidade. O cientista social Alexandre Teixeira ressalta um fator de grande relevância: o risco. “A pessoa poderia ir à uma sauna gay, por exemplo. Não é caro, não é proibido e é seguro. Por que, então, ela escolhe a rua ao invés da sauna? Por causa do risco, da fantasia”, observa. No entanto, quem vai lá para evitar ser visto, talvez esteja equivocado. “Não há um anonimato, propriamente dito. A cidade não tem tantos espaços gays disponíveis, de forma que as pessoas mais freqüentes da rua vão sempre esbarrar com outras. Elas podem não criar vínculos ou se assumir. Mas vão se ver”, explica o cientista.

Para ele, o mais curioso é que os próprios homossexuais não vêem com bons olhos a ida aos “territórios de pegação”. Nas entrevistas que fez para a pesquisa de mestrado, o cientista notou que eram comuns histórias de pessoas que se despediam uma das outras (em uma boate, por exemplo), dizendo que estavam indo para casa e depois acabavam se encontrando na nestes pontos estratégicos. O motivo, segundo ele, é que a boate tem um fim de sociabilidade específico, como beber, dançar e ser visto. Já na rua o objetivo é o sexo. Não há discriminação. “Os caminhoneiros fazem pegação, os moradores de rua e ainda pessoas que são muito ricas. Todos no mesmo local”, explica. Apesar de todo pré-julgamento do mundo exterior, nestes locais, não há condenação.


FILHOS DO PRECONCEITO

Para a psicóloga Emanuelle Pinheiro Pessoa, a existência da “rua da pegação” é resultado de uma herença cultural preconceituosa. “A nossa sociedade, ainda com fortes resquícios de uma tradição cristã, em que o sexo é voltado para procriação, discrimina algumas vezes a prática homossexual, o que faz com que o indivíduo que deseja exercer livremente sua escolha, precise criar ambientes para que esta prática seja concretizada sem discriminação”, explica.

Apesar da característica de submundo, o cientista social Alexandre Teixeira reconhece aspectos positivos na existência destes pontos de encontro públicos. Ele explica que “as ruas” existem nas cidades grandes de diversos países do mundo. O aspecto positivo estaria no fato de que as pessoas não vão nestes lugares somente à procura de sexo. “Há sim prática de sexo, mas há intereções sociais, que nascem dos encontros destes lugares”, conta. Ele explica que relações como amizade e namoros também podem surgir na rua.

Para a diretora do Centro de Referência LGBT de Belo Horizonte, Walkiria La Roche, transexual com mais de 25 anos de militância e lutas pró-diversidade, a “rua da pegação” é negativa. “Este tipo de comportamento contribui, e muito, para a imagem degradada, feia, e promíscua que se tem do homossexual. Pensa bem: o hétero conservador vai pensar ‘se esse homem se sujeita a pegar uma doença, a apanhar, a essa exposição degradante, porque eu deveria aceitá-lo e tratá-lo com dignidade? Se ele não se dá o respeito, porque eu devo dar?’”, questiona. Ela explica que o sexo em lugares públicos pode ser uma fantasia comum a casais heteros e homossexuais. Entretanto, traça uma diferença clara entre a fantasia e o que acontece no local: “Uma coisa é o fetiche de transar em público. Outra coisa é fazer disso um ponto promíscuo, um lugar sujo”.

A psicóloga explica que a promiscuidade não tem ligação direta com a orientação sexual. “O que existe é sim uma repressão que é exercida em relação à opção homossexual, o que gera o mito da promiscuidade atribuída à homossexualidade”, esclarece. Ela afirma ainda que a pessoa que tem interesse em parar de ir ao local deve, primeiramente, ter crítica e clareza de que aquela atitude não lhe faz bem. “O caminho é o autoconhecimento. Só se conhecendo o indivíduo pode encarar melhor a própria sexualidade e, então, escolher lugares onde ele possa continuar satisfazendo seus desejos com mais segurança”, explica. Walkiria indica locais em que os homossexuais podem encontrar aceitação e adquirir maior consciência sobre sua atuação e importância na sociedade. “Os centros de referência existem exatamente para isto”, afirma. Ela explica a necessidade de acabar com o preconceito, que considera infundado. “A OMS (Organização Mundial de Saúde) e o Conselho Nacional de Psicologia e Psiquiatria comprovam que o desejo sexual é natural ao ser humano e que a homossexualidade não é uma doença e sim uma condição na qual o objeto de desejo do indivíduo é alguém do mesmo sexo”, explica. “Quem somos nós para julgar? A orientação não é algo controlável. Se fosse opção, ninguém escolheria pelo sofrimento, que é seguir por este caminho de condenação e pré-julgamento que trilham os homossexuais”, finaliza.

Violência, preconceito, doenças. Apesar de todos estes fatores, a rua, em plena quinta-feira à noite, estava repleta de homens. Fileiras de carros estacionados, pessoas andando devagar nos passeios atentas a qualquer movimentação, olhares carregados vindos de todas as direções. Num país onde o casamento gay foi recentemente legalizado, e o deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) prega a homofobia, a filosofia de La Roche, o comportamento dos freqüentadores da Rua Três, e a reação da sociedade, se confundem num mar de contradições, hipocrisia e intolerância.


E ele se decidiu. Ele buscava novas experiências, diversão. Em poucos minutos, estacionava em um canto escuro na rua. Enquanto tomava coragem para descer do carro, olhava o movimento. Alguns homens passavam a pé e o encaravam. Os faróis dos carros o cegavam momentaneamente. Ele abaixava a cabeça, receoso de que a luz o identificasse. Ele não queria ser reconhecido. Ainda girava a chave do carro nas mãos, preparado para ir embora a qualquer instante. Conseguia ouvir as batidas de seu próprio coração, que pulsava fora do ritmo. Despertando-lhe de seus devaneios, um desconhecido bateu no vidro, do lado do passageiro. Sorrindo. Foi então que soube: ele ficaria.

* Nome fictícios. A pedido dos entrevistados, os nomes verdadeiros foram preservados.


FRASES

“São homens querendo conhecer homens. Acontece este tipo de interesse em todo lugar: na praia, no trânsito. Aqui é, apenas, mais evidente” – Eduardo Camargo*, 27, jornalista


“Aqui é o pior tipo de lugar que existe para os gays se encontrarem” – William Passos, 49, metalúrgico

“A rua é o escape daquela homofobia que às vezes está dentro dos próprios homossexuais” – Joaquim Siqueira*, 36, advogado

“Você se masturba e vai embora” – Saulo Sampaio*, 22, vendedor

“Ir àquela rua não te faz mal-caráter, bandido, ou qualquer outra coisa” - Eduardo Camargo*, 27, jornalista

 “A pegação pode ocorrer em qualquer lugar. Basta que existam dois indivíduos que conhecem o código de interesse” - Alexandre Teixeira, mestre em Ciências Sociais

“Quando você se assume ‘eu sou assim’, é um ato político” – Walkiria La Roche, diretora do Centro de Referência LGBT de Belo Horizonte


GALERIA DE FOTOS






















Fotos: Anderson Rocha / Lorena Otero 
Mapa: reprodução da internet. Google Maps.